Meus pais além de comércio tinham muita criação, galinhas, perus, patos, pombos, porcos, cabras, etc.. Andava tudo à solta no quintal, que era enorme. Também tinham bons cães de guarda. Um dia, uma rapariga, vinha com a "kinda" (cesto) à cabeça para comprar mantimentos e trazia atrás dela, uma filha com os seus 7 ou 8 anos. Um dos cães, por sinal uma cadela que dava pelo nome de "Guiné" e que era muito má, atirou-se à miúda e mordeu-lhe, arrancando-lhe um pedaço de carne do peito, junto à maminha.


A mãe já não quis levar a filha para casa, chamou a família toda aos gritos e exigiu que a minha mãe ficasse com a filha para a tratar, porque nos costumes das tribos locais, a minha mãe passava a ser responsável pela vida da miúda. Foi-se embora deixando a criança. A minha mãe encheu-se de coragem, desinfectou a ferida e o cozinheiro disse-lhe: "senhora, eu vou no mato buscar uma erva que vai ajudar a curar".


Foi e voltou com uma planta que em Angola chamam de "xandála". Cortou uma folha que é grossa, parecida com um cacto, lavou-a bem, raspou-a com uma faca e aplicou-a sobre a ferida. Ligaram-lhe o peito e todos os dias faziam o mesmo tratamento. A carne foi crescendo e passado pouco tempo a ferida fechou e a miúda ficou boa e foi entregue à mãe. Essa planta em Portugal é conhecida por "aloé".


Noutra história, minha mãe contou que um dia apareceu lá em casa um "cipaio" (soldado nativo, auxiliar do Chefe de Posto, que naquele tempo era a autoridade máxima na terra), que levava um recado do Chefe, dizendo que as cabras do senhor Leal estavam "presas" no Posto, porque foram estragar umas hortas. Meu pai não estava, pois tinha ido às casas filiais no mato.


Minha mãe, era uma senhora muito altiva (ai de quem lhe faltasse ao respeito), pois assim aprendeu com as suas tias. Foi ao Posto, entrou, e quis saber o que se passava. O Chefe começou a "armar-se", a levantar a voz. Que as cabras estavam presas e não saiam de lá.

Minha mãe muito direita, dirigiu-se ao Chefe de Posto, agarrou-o pelos colarinhos, deu-lhe dois abanões e disse-lhe: "Eu vou agora para casa, se o senhor não me devolver as cabras, eu volto cá outra vez". Deu meia volta e foi-se embora. O homem parecia um boneco nas mãos de minha mãe, que era alta e ele baixinho, ficou sem fala. Quando minha mãe chegou a casa já vinha o "cipaio" com as cabras que o Chefe de Posto mandou levar e ainda pediu desculpas a meu pai, quando este regressou do mato.

Armando e os seus cavalos na sua "fazenda" em Santa Cruz do Cuando – Mavinga – Angola


Rio Cuando na fazenda do Armando no Rivungo – Angola

Comunhão solene da Mimi e da Nina, com 12 e 10 anos



Por volta de 1930, meu pai recebeu uma carta de Barrancos, da minha avó, dando a triste noticia da morte de meu avô paterno. Como ela ficou sozinha com a filha Constança, de 18 anos, pedia a meu pai para regressar a Portugal, a fim de tomar conta da agricultura e dos negócios do pai.



Meu pai com a vida organizada em Angola, era-lhe impossível ir, embora minha mãe lhe sugerisse que fosse apenas por uns tempos para organizar a vida de minha avó, mas ele disse que só ia se minha mãe fosse. Mas como ela não quis ir por ter os filhos pequenos, meu pai também não foi.



Minha avó resolveu vender tudo o que tinha sem dizer nada a meu pai. Casa, terrenos e alguns cavalos. Apareceu um homem a propor a compra dos bens e ela não percebendo nada de negócios, vendeu, e segundo ouvi meus pais contar, o homem era um vigarista que enganou minha avó, comprando tudo por muito menos do que valia. Minha avó embarcou com a filha para Angola e apareceram de surpresa ao meu pai, que não aprovou a venda sem consentimento dele, mas como estava tudo assinado pela mãe, nada podia fazer.



Elas ficaram a viver com meus pais, depois minha tia Constança casou com um comerciante de Quinjenje, chamado Missas. Tiveram uma filha a que puseram o nome de Aurélia.


O Francisco, o António, a Lili e o Armando ficaram encantados com a chegada da avó. Era uma experiência nova na vida deles. A avó tinha uma maneira engraçada de falar, meio português, meio espanhol, que é o "barrancanho", dialecto de Barrancos. A avó usava vestidos compridos, e um dia, estando eles a brincar no quintal com um arco de barril, viram um carreiro de "bissondes", formiga africana, vermelha, armada de duas pinças na boca, que mordem a valer e se alguém cair no seu carreiro, inanimado, esse bichinho mata, porque são tantos milhares que cobrem o corpo e entram pelo nariz, boca, ouvidos e até pelos olhos e não há hipóteses de se salvar.


Como estava dizendo, os meus irmãos viram os bissondes e como eram malandros, o que foram pensar? Deitaram o arco no carreiro das formigas e mandaram o Armando que era mais pequenino, fingir que estava a chorar e ir lamentar-se à avó que o arco tinha caído em cima das formigas. Minha avó, que não conhecia essa qualidade de formigas, acarinhou o neto e foi buscar o arco. Claro está que os bissondes começaram a trepar pelas saias compridas e pelas pernas e a morder. Minha avó começou a gritar aflita, e os meus irmãos quando viram o mal que tinham feito, fugiram com medo. Veio minha mãe e os criados, em socorro da senhora que aflita, gritava para os netos, seus "riatunos", que em barrancanho, quer dizer malandros. Claro está que os meus maninhos foram premiados com uma grande tareia.


Entretanto, os negócios do meu pai começaram a falhar, porque um dos sócios roubou e fugiu. Meu pai desgostoso, pois sociedades é o que dá, acabou por vender o que lhe restava e foram para Silva Porto, capital do Distrito do Bié, uma cidade pequena, mas muito acolhedora e muito bonita

A familia Leal em Silva Porto em 1959