Na euforia do resgate das fontes escritas, dos testemunhos e da importância que vem sendo atribuída a este tema, particularmente neste últimos anos, por vários investigadores derivados das suas pesquisas, ficamos a saber que a presença dos judeus em Cabo Verde remonta aos inícios da sua colonização, após a grande dispersão movida essencialmente por factores de ordem económico-sociais, mais do que religiosos e à acção inquisitorial institucionalizada, nos finais do séc. XV na Península Ibérica.


Da sua situação em Cabo Verde nessa época sabemos pouco, mas documentos referem que constituíam uma comunidade que facilmente se adaptou à cultura das ilhas dando por isso importante contributo para a construção da sociedade cabo-verdiana.


Desde logo, tiveram papel importante na rede comercial Atlântica que então se desenvolvia, desempenhando também tal qual em Portugal, cargos importantes na administração judicial, fiscal e financeira das ilhas como contador, feitor, corregedor, provedor, ouvidor, promovendo-se mutuamente.


Como homens de negócios, também exerceram outros ofícios, espalhando-se inicialmente pelas principais ilhas que constituíam pólo de atracção e onde a actividade económica estava mais desenvolvida, Santiago e Fogo.

Cemitério dos Judeus

Entrada do Cemitério dos Judeus, Penha de França, Santo Antão



Todavia e segundo a documentação compulsada, é a partir do século XIX até meados do século XX, que a sua presença em Cabo Verde se torna mais frequente e notória. Judeus vindos de Portugal e outras origens fixam-se temporária ou permanentemente nas mais variadas ilhas do nosso arquipélago, guardando alguns a sua cultura e tradição e desempenhando as mais diversas profissões.


Nesse período Cabo Verde continuava sendo um lugar de eleição, onde, como imigrantes, puderam desenvolver as suas habilidades seculares e que sempre os caracterizou. Apesar de reparamos nas raras legislações emanadas na então província e também da metrópole para a província em relação aos homens de origem hebraica e que continham cariz discriminatórios, na época puderam ainda habilmente contornar a situação e manter a exequibilidade dos seus negócios, adquirindo posições de prestígio e de direcção.


De origens diversas, Marrocos, Gibraltar, Argel e Tunis, muitos deles chegavam com nacionalidades diferentes, sendo na sua maioria além de súbditos britânicos, portugueses, quando o requeressem, e raramente súbditos franceses e espanhóis.


A adopção de uma nacionalidade diferente da de origem, conforme as fontes consultadas, para além da coercivamente adquirida para os nascidos em Portugal por terem fé diferente e por isso mesmo não serem registados na ocasião do baptismo nas igrejas e desta forma serem registados em consulados estrangeiros, fazem-nos pressupor que isso fê-los, no entanto, beneficiar de facilidades de entrada, privilégios, direitos e isenções fiscais outorgados por tratados que se estabeleciam entre Portugal e o país de naturalidade adquirida.


Daí a eleição de Cabo Verde, como lugar de fixação nessa segunda vaga da imigração judaica, dependesse a nosso ver, da sua entrada ou não como súbdito de determinado país com o qual Portugal, a metrópole, tinha estabelecido tratados de cooperação, beneficiando-se das regalias estatuídas.


Assim sendo, entrados na condição de súbditos britânicos, em maior número, verificamos que de acordo com o Tratado de Navegação estabelecido entre Portugal e a Inglaterra em 1842, gozavam de privilégios vários, imunidades e protecção que o arquipélago podia auferir pela legislação portuguesa.


De acordo com as cláusulas deste Tratado, como súbditos britânicos podiam residir, ocupar casas e armazéns, dispor dos seus bens alodiais e enfitêuticos e de qualquer propriedade legalmente adquirida, por venda, doação, escambo ou testamento ou por qualquer outro modo, sem qualquer impedimento.


Eram isentos do serviço militar, de empréstimos forçados ou de quaisquer outras contribuições extraordinárias não gerais e estabelecidas por lei, tendo os mesmos direitos que os cidadãos nacionais. Da mesma forma, as suas casas de habitação, armazéns, lojas que adquirissem eram respeitados e não sujeitos às buscas arbitrárias a que podiam incorrer.


Beneficiando de liberdade e facilidades comerciais, de isenções de impostos, inspecções judiciais aos seus negócios (décimas industriais e direitos alfandegários), podiam abrir lojas e armazéns a retalho como qualquer súbdito nacional, segundo os regulamentos municipais e policiais, não sendo obrigados, por isso, ao pagamento de tributos e ou impostos adicionais, nem impedidos de contrair monopólios, contrato ou privilégio exclusivo de quaisquer vendas ou compras, tendo a faculdade de livremente vender a quem quisessem e como bem entendessem, sem serem obrigados a dar preferência alguma ou a favor em consequência da obtenção do direito de exclusividade.


Mais do que isso, podiam agenciar os seus próprios negócios ou remetê-los à administração de alguém, como procurador nomeado para o efeito, substabelecer procurações, transmitir por herança os seus bens e tomar posse dos mesmos, ter o livre exercício e uso da sua religião, manifestar as suas convicções religiosas, podendo reunir-se para os objectos do culto público, celebrar os ritos da sua religião nas suas moradas ou em lugares para esse fim destinado e enterrar os seus mortos de acordo com a sua tradição.


Com o direito a esses privilégios, os que entraram, em pouco tempo formaram uma comunidade familiar ou não, estabelecendo-se principalmente nas ilhas de Santo Antão, Santiago, Boavista e S. Vicente.


No arquipélago, formaram associações comerciais entre si e com negociantes nacionais, construíram casas, adquiriram lojas, armazéns comerciais nos principais centros urbanos e obtiveram também, em alguns casos, exclusividade de exploração comercial.


Constituíram-se em grandes proprietários urbanos e rurais sobretudo em Santiago e Santo Antão, desempenhando também altos cargos no funcionalismo público, cargos diplomáticos como agentes consulares de países estrangeiros como o Brasil, Itália, Espanha e Dinamarca. Foram professores, oficiais de justiça, vereadores e escrivães das câmaras dos diversos concelhos do país, escrivães da fazenda pública, regedores de paróquias ligando-se também ao exercício de outros ofícios como empregados e gerentes de casas comerciais, retalhistas, mecânicos, sem se entregarem, embora possuíssem alguns grandes propriedades, ao mister de trabalhar a terra, o que nos leva a crer que tinham homens a seu serviço.


Ainda que não possamos estimá-los, demograficamente nesse período, sabemos que os judeus ou homens de origem judaica viveram em Cabo Verde em número significativo, de acordo com as estatísticas apresentadas para a época, dispondo de excepcionais condições de vida, oriunda especialmente da sua longa experiência histórica (ver Relatório da delegação da junta de saúde pública de St.º Antão pelo Dr. Francisco Frederico Hopffer – "Movimento da população", B.O. n.º35, 1874).


Dotados de uma espantosa mobilidade geográfica (os judeus são incontestavelmente um povo de migrantes) e como homens de negócios, encontramo-los nas suas relações comerciais e financeiras, cruzando e circulando por entre as ilhas do arquipélago tornando extensivas as suas propriedades e firmas comerciais em quase todo o território, desenvolvendo a nível interno uma extensa rede comercial apoiado sobretudo na base do associativismo e relação de solidariedade que os distinguiu dos demais. A cada mudança de lugar correspondia além de uma simples deslocação física mas também uma oportunidade de negócios. O curioso, apesar de não nos apercebermos do grau de participação, é que mantinham a partir de Cabo Verdes relações com os seus correligionários no exterior, mantendo também relações familiares e sentimentais quer com Portugal, Inglaterra, Gibraltar, Marrocos e inclusive Moçambique.


Sem ser um lugar de refúgio e degredo a que já estavam habituados, Cabo Verde, apesar dos desígnios da natureza e de crise por que atravessou na maior parte do período que correspondeu à fixação dos judeus, particularmente, durante o século XIX e parte do século XX, abria-lhes desta forma a possibilidade de continuarem o desafio ante o qual sempre se depararam de continuar a viver a qualquer preço e de transferirem as suas fortunas, a sua vivência, grau de educação, solidariedade e rivalidades aos seus descendentes, de enriquecer e ascender socialmente independente de seguirem ou não a religião do pai ou de tomarem o seu nome.


Contudo, ressalvamos, que muito embora fossem portadores de diferentes graus de cultura e de requisitos excepcionais para a actividade comercial dentro da situação conjuntural vivida na altura em Cabo Verde, não distinguimos influências exercidas quer a nível de ideais, comportamento e crenças no arquipélago.


De acordo com as nossas investigações e vários inquéritos feitos pelas ilhas de maior concentração judaica, é que não terão deixado qualquer tipo de influências e ou manifestações culturais no país. Cremos, por isso, embora as fontes consultadas não nos permitiram qualquer outra informação, e, por outro, escassa é a documentação que refere directa ou indirectamente a essa influência exercida pelos sefarditas nos costumes e tradição cabo-verdianos, que desses homens de origem hebraica chegados a Cabo Verde em meados de oitocentos, revelando em certos casos a existência de uma endogamia familiar, noutros casos, vindos com família organizada acabaram por se integrar e misturar com o catolicismo, ligando-se também às mulheres da terra formando outra família, respeitando, no entanto as convicções religiosas do seu cônjuge, deixando descendentes aos quais procuraram transmitir os seus ideias, atitudes, crenças mas também bens matérias.


Destes descendentes, na maior parte dos casos, curiosamente, constatamos também, que os que seguiram a religião mosaica foram os de pai e mãe judeus. Nos casos em que um dos cônjuges não era judeu, seguiam a religião da mãe, geralmente católica. Noutros casos, para além dos casamentos mistos, pareceu-nos que os costumes e rituais judaicos diluíram-se na nossa sociedade predominantemente cristã, acabando por apresentar formas de comportamentos variados e seus modos de pensar e viver apresentaram-se-nos de forma pouco compreensível frutos da integração e mistura de várias gerações com a população cabo-verdiana.


Não se sabe ao certo, hoje, quantos judeus vivem em Cabo Verde. O que se pode afirmar é que há muitas famílias com apelidos judaicos de origem peninsular que se reconhecem em nomes como Auday, Cohen, Brigham, Bettencourt, Wahnon, Seruya, Oliveira, Anahory, Benholiel, Levy, Bentubo, Azancot, Izaguy, Abitbol, Zagury, Cagi, Benchimol, Benrós, representando os descendentes uma franja significativa da população.


Comprovativos da sua passagem ficaram também as casas, os cemitérios e os túmulos como os únicos sinais físicos da sua presença em Cabo Verde.São os chamados pontos de memória que ainda existem nas ilhas da Boavista, Santo Antão, Santiago e S. Vicente.


Ilha da Boavista – Para além das casas de David Benoliel, à família Abraham e Esther Benoliel, do Isaac Benoliel e a capela de Fátima mandada construir por David Benoliel, encontramos em Sal Rei – ao pé do Pico da Rixa ou Rotchinha, um cemitério dividido em duas partes, com oito túmulos, apenas seis em bom estado de conservação da família Benoliel.


Ilha de Santo Antão – Região com maior concentração judia com a existência de dois cemitérios:

•  Ponta do Sol – com sete campas das famílias Pinto, Brigham, Cohen, Ahoday (Auday)


•  Ribeira Grande – Campinas, Alto Penha de França, na subida de Santa Bárbara – com seis túmulos da família Benroz, Maman e Brigham.


Ilha de Santiago – em bom estado de conservação contabilizamos oito campas:



•  Praia – logo à entrada do Cemitério da Várzea, em bom estado de conservação contabilizamos oito campas pertencentes às famílias Seruya, Auday, Benros e Alves. O último enterramento israelita foi realizado em 1918. Terá sido um cemitério separado incorporado mais tarde no cemitério cristão;


•  Santa Catarina - uma sepultura, na propriedade dos Benchimol. De Eliel Benchimol, de Gibraltar, chegado em 1880.


Ilha de S. Vicente – No cemitério municipal de Chã de Cemitério, localizamos apenas dois túmulos da família Benoliel de Carvalho e Cohen. Os túmulos identificados contêm geralmente o nome, a data de nascimento, origem dos indivíduos e a data de falecimento. De notar que as escrituras em Hebraico são traduzidos para o Português encontrando-se a tradução feita na base inferior logo a seguir à escritura.


Através das inscrições em português e em hebraico nos túmulos a confirmação que os judeus vieram na sua maioria das cidades de marroquinas de Tânger, Tetuan, Rabat e Mogador (agora Essaouira), de Gibraltar, Argel, Túnis.


Nota sobre a autora:


Cláudia Correia é detentora de um mestrado em História, cuja a dissertação, A Presença dos Judeus em Cabo Verde, publicada em livro (Praia, 1998).